quarta-feira, 10 de agosto de 2011

INCONSTITUCIONALIDADE DA SÚMULA 711 DO STF


Súmulas são entendimentos pretorianos acerca de determinada matéria já debatida no ambiente interno do Tribunal. Consoante o autor Dirley da Cunha Junior[1] “súmula é a consolidação de entendimento da jurisprudência predominante de um tribunal acerca de determinada matéria”.
Nesse sentido é o ensinamento do jurista André Franco Montoro[2]:
   
A “Súmula” tem relevantes efeitos processuais no acolhimento de determinados recursos especificados no Regimento Interno no Supremo Tribunal Federal. Sua finalidade é não só proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho do advogado e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes.

A Súmula 711 do STF, objeto do presente estudo, tem por característica principal definir a aplicação de uma norma de Direito processual penal quanto a irretroatividade da Lei penal no que se refere ao crime continuado e permanente, in verbis:

A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência.

De acordo com a súmula supracitada será aplicada a lei penal mais grave aos fatos imputados como crime permanente ou continuado nos casos em que sua consumação não tenha sido cessada, independente se a mencionada lei vier a ser aplicada após ou durante o cometimento do delito (continuado ou permanente).
Tratar o crime permanente e crime continuado da mesma forma é um equivoco. Ambos  constituem institutos penais distintos.
Na definição do autor Cezar Roberto Bittencourt[3], crime permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, seqüestro). Nesse sentido o crime permanente representa uma conduta delitiva que tem duração indeterminada cuja consumação está sempre se renovando enquanto não houver cessado a atividade criminosa. Exemplo, como referido acima, é o crime de seqüestro que tem inicio com a captura da vitima e se prolonga durante todo o período em que esta estiver sob domínio do seqüestrador.
Dessa forma, referente ao crime permanente, é plenamente aceitável a aplicação da súmula 711 do STF, uma vez que a conduta criminosa se procrastina no decorrer do tempo e a entrada em vigor de uma nova lei penal, dando tratamento mais rigoroso à conduta criminosa em questão, em nada altera o fato de que crime permanece ocorrendo.   
No entanto, o mesmo não pode ser dito em relação ao crime continuado, uma vez que este possui natureza jurídica totalmente diferente do crime permanente.
Relativamente ao crime continuado essa conclusão contraria o principio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave, uma vez que este crime diferente do crime permanente é uma ficção jurídica na qual varias condutas delitivas são unificadas para formarem um delito.
O Código Penal brasileiro define o crime continuado no artigo 71, in verbis:

Art. 71- Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica -se- lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

A doutrina afirma que a criação do crime continuado ocorreu durante a idade média e teve como principal objetivo evitar que os autores do terceiro furto fossem condenados à pena de morte. Portanto, hodiernamente, tem o instituto a finalidade de impedir que autores de crimes, que perfaçam os requisitos do crime continuado, sejam condenados a penas excessivas.
Consoante o autor Cezar Roberto Bittencourt o crime continuado é:[4]

... uma ficção jurídica concebida por razões de política criminal, que considera que os crimes subseqüentes devem ser tidos como continuação do primeiro, estabelecendo, em outros termos, um tratamento unitário a uma pluralidade de  atos delitivos, determinando uma forma especial de puni-los.
                                 
Assim, se a aplicação desse instituto jurídico penal (crime continuado) visa atenuar a sanção penal de forma a conferir singularidade a uma pluralidade de delitos com o objetivo de que o autor do fato delituoso não venha a ser punido por várias condutas delituosas, a súmula 711 do STF contraria expressamente a intenção do legislador visto que preconiza exatamente o contrário, ou seja, prejudica rigorosamente o autor de um delito desta ordem, uma vez que o cometimento dos delitos antecedentes, mesmo que não ocorridos na vigência da lei mais grave, será considerado como se tivesse acontecido durante a vigência da lei mais grave.
A partir desse raciocínio, o criminoso que, desejando montar uma geladeira para si, tenha furtado de uma fábrica 90% (noventa por cento) das peças deste bem, poderá ser responsabilizado pelo crime que uma nova lei promova tratamento mais grave. Nesse caso, entendemos que, em razão da desproporcionalidade entre o número de delitos cometidos pelo criminoso antes da entrada em vigor da lei penal mais grave e o número de delitos cometidos após a vigência da citada lei, a aplicação da lei penal mais grave colide frontalmente com os princípios orientadores do instituto do crime continuado que é amenizar a responsabilidade penal do delinqüente de forma que este não venha a ser condenado por vários crimes.
Esse é o ensinamento do ilustre professor, Cezar Roberto Bittencourt[5], quando diz que a regra do crime continuado deve ser aplicada tendo em vista o caso concreto e sob inspiração das mesmas razões de política criminal que o inspiraram.
Além da disso, a referida súmula fere o principio da irretroatividade da lei penal mais grave consubstanciado no art. 5º inciso XL da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art.5- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) XL- a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu  

Segundo o principio da irretroatividade da lei penal mais grave, nenhuma lei incriminadora pode atingir fatos ocorridos antes de sua vigência, isto é, qualquer lei material que restrinja garantias fundamentais do individuo não pode regular fatos pretéritos. Contudo, caso a lei mais nova venha a beneficiar de qualquer maneira o acusado ou condenado, esta poderá atingir fatos anteriores a sua vigência.
Entretanto, o principio da irretroatividade da lei penal mais grave não absorve as leis processuais, ou seja, as leis que visam somente regular o procedimento e os atos processuais possuem aplicação imediata e não devem retroagir nem mesmo para beneficiar o réu.
Enfim, resta evidente a inconstitucionalidade da sumula 711 do Supremo Tribunal Federal em relação ao crime continuado uma vez que esta espécie normativa contraria o principio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave.


[1] Op. Cit., Pag. 359
[2] MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed., 2ª tiragem- São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000. Pag. 356
[3] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol 1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. Pag. 266
[4] Op. Cit., Pag. 719
[5] Op. Cit., Pag. 720

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