sábado, 1 de junho de 2013

CONSTITUIÇÃO E SUAS TRADICIONAIS CONCEPÇÕES


                        Todos os Estados possuem e sempre possuíram, em todos os momentos da sua história, uma Constituição material, real e verdadeira. A diferença surgida em tempos mais recentes não é a presença de Constituições reais e efetivas, mas sim o aparecimento de Constituições escritas nas folhas de papel.

                        Em linguagem simples e objetiva, Dirley da Cunha conceitua a Constituição como um conjunto de normas jurídicas supremas que estabelecem os fundamentos de organização do Estado e da Sociedade, dispondo e regulando a forma de Estado, a forma e sistema de governo, o seu regime político, seus objetivos fundamentais, o modo de aquisição e exercício do poder, a composição, as competências e o funcionamento de seus órgãos, os limites da sua atuação e a responsabilidade de seus dirigentes, e fixando uma declaração de direitos e garantias fundamentais e as principais regras de convivência social.

 (A) Concepção sociológica

                        Numa concepção sociológica, a constituição haure a sua origem na própria realidade social. A constituição, nesse sentido, não é produto da Razão, mas sim resultado das forças sociais; não é pura forma de “dever ser”, mas de “ser”.

                        Nessa perspectiva, a constituição deve ser examinada, não em si mesma, mas em relação à sociedade que a adota, da qual ela constitui puro reflexo, ou expressão da realidade nela existente.

                        Ferdinand Lassalle, na sua obra “A Essência da Constituição”, revelou os fundamentos sociológicos das Constituições: os fatores reais do poder que regem determinada sociedade. Esses fatores reais constituem, segundo Lassalle, uma força ativa e eficaz que, por uma exigência da necessidade, informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes no país, determinando que elas sejam o que realmente são.

                        Para ele, constituem fatores reais do poder: a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros e, com especial conotação, a pequena burguesia e a classe operária, todos, sem exceção, compondo parte da Constituição, que ele denomina Constituição real e efetiva.

                        Essa teoria distintiva de Lassalle apenas demonstra um fato: a diferença entre a Constituição jurídica, tal como exposta e configurada num documento escrito, e a constituição real, tal como observada, realizada e cumprida na realidade.

                        Assim, essa Constituição real e efetiva não se confunde com a constituição jurídica, que não passa de uma mera folha de papel que deve necessariamente refletir a constituição real. A constituição jurídica não pode divorciar-se da constituição real, sob pena de tornar-se ilegítima.

                        Lassalle conclui o seu pensamento afirmando que os problemas constitucionais não são problemas jurídicos, mas sim problemas de poder. E que a constituição de um país – a sua constituição real – somente pode ter por base os fatores reais de poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor, nem são duráveis, a não ser que exprimam fielmente os fatores reais do poder que imperam na realidade social.

(B) Concepção política

                        Para Carl Schmitt, a constituição é entendida como o modo e a forma de ser de uma unidade política, ou seja, de uma Nação. Nesse sentido, a Constituição significa, essencialmente, decisão política fundamental, decisão concreta de conjunto sobre o modo e a forma de existência da unidade política.

                        A constituição, como uma decisão consciente da comunidade política, deriva de uma vontade política já existente. Daí considerar-se Schmitt como um voluntarista, uma vez que confere relevante papel a vontade política da Nação.

                        Percebe-se, no pensamento de Schmitt, que não é a constituição que produz a unidade política, mas, inversamente, é a unidade política, ou seja, a Nação que gera a Constituição. Enfim, a constituição só existe porque antes dela já existia uma unidade política, e somente a decisão conjunta de um povo sobre o modo e a forma de sua existência é que confere a um conjunto de normas o caráter de constituição.

                        Para a conceituação de constituição, Schmitt parte de uma distinção que considera fundamental entre Constituição e leis constitucionais. Para o autor, a constituição corresponde apenas a um conjunto de normas referentes aos aspectos fundamentais do Estado, que ele denomina decisões políticas fundamentais. Tudo o mais, por não se relacionar com aqueles aspectos, integra o conceito de lei constitucional, pelo só fato de integrar o texto normativo de uma constituição.

                        Conclui o autor, revelando os resultados práticos da sua distinção entre constituição e lei constitucional, que tem como mais importante conseqüência a seguinte: enquanto as leis constitucionais podem ser reformadas, pelo processo de reforma constitucional, as decisões políticas fundamentais jamais podem ser reformadas.

                        Outro efeito da distinção consiste em que, segundo Schmitt, nas chamadas situações constitucionais de crise, somente as leis constitucionais podem ser suspensas, nunca as decisões políticas fundamentais.

(C) Concepção jurídica

                        Numa concepção estritamente jurídica, a constituição é concebida como uma norma jurídica, uma norma jurídica fundamental de organização do Estado e de seus elementos essenciais, dissociada de qualquer fundamento sociológico, político ou filosófico.

                        Hans Kelsen foi o maior defensor do conceito puramente jurídico de constituição. Para ele, a constituição pode ser concebida em dois sentidos: no lógico-jurídico, como a norma hipotética fundamental, pressuposta, que serve de fundamento lógico transcendental de validade da própria constituição jurídico-positiva; e no jurídico-positivo, como a norma positiva suprema, fundamento de validade para todas as outras normas positivas, ocupando, destarte, o vértice do ordenamento jurídico do Estado.

                        A teoria pura do Direito é, segundo proclama o próprio Kelsen, uma teoria do direito positivo, uma vez que centrada no exame formal da norma jurídica. Em face disso, é uma teoria da dogmática jurídica, já que contempla, normativamente, as regras efetivas, impostas por seres humanos para seres humanos, ou seja, como dispositivos do dever ser, como normas, portanto.

                        Kelsen teve, portanto, o mérito de estabelecer o seu princípio metodológico fundamental: garantir um conhecimento dirigido exclusivamente ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu exato objeto. Ou seja, o Direito deve ser encarado como norma, jamais como fato social ou como valor transcendente.

                        A teoria pura de Kelsen trabalha com a categoria fundamental “norma jurídica”, em torno da qual gravitam outras categorias teóricas, àquela referidas diretamente: ilícito, sanção, validade, eficácia, etc. Disto resulta que, para essa teoria, o direito é um sistema de normas prescritivas de conduta humana, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade, representado pela norma fundamental.

                        Kelsen concebeu o Direito como uma ordem normativa, ou seja, como um sistema escalonado de normas jurídicas, onde várias normas são estruturadas e dispostas hierarquicamente. Segundo o autor, a unidade do sistema jurídico é produto da relação de dependência, que resulta do fato de a validade de uma norma jurídica apoiar-se sobre essa norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra e assim por diante, até alcançar-se uma norma suprema, que funcione como o fundamento último de validade, o qual garante a unidade do direito, fechando o sistema jurídico, à medida em que todas as normas jurídicas do sistema são reconduzidas a ela. O fundamento de validade da norma pressuposta não pode ser questionada, apresentando-se essa norma como um postulado.

                        Em termos práticos, pode-se dizer que é a norma fundamental que impõe obediência à Constituição de um País e às demais normas jurídicas por esta fundamentadas. Nesse sentido, a norma fundamental é o ponto inicial do Direito.