quinta-feira, 1 de março de 2012

PRINCIPIO DA OFENSIVIDADE E CRIMES DE PERIGO

O direito penal possui importantes princípios constitucionais, entre eles o da ofensividade, ou também conhecido como lesividade. Nilo Batista enumera as funções de tal norma jurídica, sendo essas as seguintes: proibir a criminalização de atos internos; proibir a incriminação de atitude que não ultrapasse o âmbito do autor em si; proibir a criminalização de estados existenciais; proibir a criminalização de comportamentos desviados que não lesem bens jurídicos[1]. Todos esses vetores restritivos fazem parte do significado do brocardo cogitationis poenam nemo patitur.
Já Cezar Roberto Bitencourt[2], enxerga uma diferenciação entre o princípio da ofensividade e o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos, asseverando sobre este último que “não compete ao Direito Penal tutelar valores puramente formais, éticos e religiosos; como ultima ratio, ao Direito Penal se reserva somente a proteção de bens fundamentais para a convivência e o desenvolvimento da coletividade”, destacando, ademais, de forma concisa, no que consiste a diferença entre ambos, aduzindo que no princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos “há uma séria limitação aos interesses que podem receber a tutela do Direito Penal; no princípio da ofensividade, somente se admite a configuração da infração penal quando o interesse já selecionado (reserva legal) sofre um ataque (ofensa) efetivo, representado por um perigo concreto ou dano”.
 Sabe-se que os crimes são classificados em diversas categorias, entre elas, a que diferencia os de perigo – abstrato e concreto – e os de dano. Magalhães Noronha[3] define estes últimos como “os que só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico tutelado: homicídio, lesões corporais”, conquanto os de perigo abstrato são “os que se contentam com a probabilidade de dano”, e sobre a subdivisão dos crimes de perigo, “abstrato quando a lei o considera como resultante de certas ações, baseada em regras ditadas pela experiência ou pela lição dos fatos” e o concreto “quando necessitar de ser investigado e provado, caso por caso”, concluindo que “enquanto no perigo abstrato a atuação perigosa é presumida, no concreto há de ser demonstrada no fato”.
Cabe neste momento entrar em uma discussão doutrinária, qual seja, a legitimidade dos crimes de perigo abstrato sob o olhar do princípio da ofensividade.
Ao que parece, o pioneiro que levantou a bandeira de inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato foi Luiz Flávio Gomes[4], ao balizar que:
Os crimes de perigo abstrato configuram uma antecipação da punição, é uma presunção legal, e presunções legais no Direito Penal fogem à razoabilidade diante do caso concreto. Ademais, afrontam o princípio constitucional implícito da lesividade no Direito Penal (...). Ora, o Direito Penal é ramo subsidiário, com campo de atuação limitado a lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos relevantes, logo, tutelar uma conduta que nem mesmo leve perigo a bem jurídico é uma extrapolação, é uma afronta direta às liberdades individuais e, portanto, ao princípio da proporcionalidade em seu viés negativo.

No mesmo sentido, reconhecendo a inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato, Cezar Roberto Bitencourt[5]:
Para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Em outros termos, o legislador deve abster-se de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal.       

De prontidão, destaque-se a total inconsistência dos argumentos dos supramencionados autores. Não há Messias do direito penal brasileiro, mas há vozes tupiniquins que, de forma consciente e honesta, elucidam e esclarecem, sem apelo a fórmulas mágicas, as mentes de leitores – poucos diga-se de passagem – que se prestam a ler um pouco mais a fundo sobre determinado tema.
Uma dessas vozes é Luís Filipe Maksoud Greco. O autor foge dessa linha da inconstitucionalidade de crimes de perigo abstrato, aprofundando a temática, observando, principalmente, as questões do bem jurídico e das estruturas do delito. Os autores nacionais que defendem a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato trabalham com uma equivocada idéia de bem jurídico coletivo, com fim de legitimar punições – em geral, exageradas – para ações que julgam perigosas concretamente ou danosas.
Segundo Greco[6], “a soma de vários bens jurídicos individuais não é suficiente, porém, para construir um bem jurídico coletivo, porque este é caracterizado pela elementar da não-distributividade, isto é, ele é indivisível entre diversas pessoas”. E complementa exemplificando que “cada qual tem sua vida, a sua propriedade, independente dos demais, mas o meio ambiente ou a probidade da Administração Pública são gozados por todos na sua totalidade, não havendo uma parte do meio ambiente ou da Administração Pública que assista exclusivamente a A ou a B”. E, referente a um clássico falso bem jurídico coletivo, a saúde pública, argumenta o penalista “nada mais é do que a soma das várias integridades físicas individuais, de maneira que não passa de um pseudo-bem coletivo”.
Assim, ao darem legitimidade para o bem jurídico coletivo saúde pública, estão os doutrinadores brasileiros justificando a penalização de crimes que, na verdade, detém estrutura de perigo abstrato o qual afetam bem jurídico individual, que, por sua vez, são tidos como inconstitucionais pelos mesmos autores. Completa inconsistência!
            Explica-se melhor: o artifício utilizado por alguns autores é no sentido de criar/legitimar falsos bens jurídicos coletivos para aceitar a punição das ações, pois transportam os crimes da categoria de perigo abstrato que afetam bem jurídico individual para de dano que afetam bem jurídico coletivo.
Deste modo, no tráfico de drogas, alega-se que há lesão a saúde pública, e justifica-se a pena mínima e máxima no patamar elevadíssimo. Mas o que se deu, efetivamente, é um perigo abstrato de lesão à integridade física daquele que adquiriu a droga.




[1]BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, pp. 92 e ss.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral. vol 1. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 29-30.
[3]NORONHA, Magalhães. Direito penal. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 107-108. 
[4] GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante: princípios e expansão do direito penal. Disponível em http://www.lfg.com.br/artigos/Blog/Embriaguez%20ao%20volante,%20principio%20da%20lesividade%20e%20expansao%20penal_Ireneu.pdf, acessado em 14 de fevereiro de 2011.
[5] BITENCOURT, Cezar. Ob. cit., pp. 27-28.
[6] GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 39,  2004, p. 115.