segunda-feira, 15 de agosto de 2011

CRIME ORGANIZADO E PROVA

Existe uma tendência contemporânea no processo penal que busca o equilíbrio entre a exigência de assegurar ao investigado, ao acusado e ao condenado a aplicação das garantias fundamentais do devido processo legal e a necessidade de maior eficiência do sistema persecutório para a segurança social. Embora reconhecidamente de difícil aplicação esse equilíbrio, essa tendência pode ser caracterizada por ser uma meta ou diretriz a ser seguida pelo processo penal.
A repressão ao crime organizado é muito difícil do ponto de vista de colheita de provas visto que ela atua de modo a evitar a evitar o encontro de fontes de prova de seus crimes. Por isso, a Lei 9.034/95 prescreveu meios de obtenção de provas até então inexistentes no processo penal brasileiro, tais como: a ação controlada e infiltração policial.     
Conforme anota o Professor Antônio Scarance Fernandes, existe uma distinção no que se refere aos meios de investigação e formação de provas. Em seu artigo[1], o equilíbrio entre a eficiência e o garantismo e o crime organizado, o mesmo ressalta que para analisar o equilíbrio entre a repressão ao crime organizado e os direitos fundamentais “interessa a separação dos meios de investigação em duas categorias: os meios não específicos e os meios específicos”.
Os meios não específicos são aqueles elencados expressamente na Lei 9.034/95 e posteriormente acrescentados pela Lei 10.217/01, ou seja, são aqueles que importam maiores restrições aos direitos individuais. São eles; o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais (art.2º III); a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial (art.2º IV acrescentado à Lei 9.034/95 pela Lei 10.217/01).
  Os meios específicos são: a ação controlada (art.2º II), que consiste em retardar a intervenção policial nas supostas ações praticadas por organizações criminosas ou a elas vinculadas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações, e infiltração por agentes de polícia ou de inteligência (art.2º V acrescentado à Lei 9.034/95 pela Lei 10.217/01), em tarefas de investigação, constituídas por órgãos especializados e mediante autorização judicial fundamentada.
No que se refere aos meios não específicos, surge uma polêmica. A constituição prevê a inviolabilidade do sigilo a correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (art.5º XII), enquanto que Lei 9.034/95 declara que o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais é permitido como procedimento de investigação e formação de provas (art.2º III).
Se definirmos dados[2] como elemento de informação, em forma apropriada para armazenamento, processamento ou transmissão por meios automáticos, literalmente há uma incompatibilidade entre os dispositivos supracitados já que a Constituição autoriza tão somente a quebra do sigilo telefônico, desde que, mediante ordem judicial nas hipóteses e forma que a lei estabelecer e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
No entanto, o Código Tributário Nacional prevê a violação do sigilo fiscal (art.198 §1º, I), a LC 105/01 (art.1º §4) em relação ao sigilo bancário e o Código Eleitoral prescreve a obrigação das repartições públicas em fornecerem informações eleitorais desde que requisitadas pelas autoridades (art.371).       
Portanto, em face da Constituição Federal não ter mencionado especificamente a proteção aos sigilos bancário e fiscal, bem como ter declarado a inviolabilidade da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados, entendemos que dentro dos critérios estritos de aplicação do critério da proporcionalidade, admite-se a violação a estes sigilos quando necessária para proteger outro bem de valor superior ao do sigilo violado e também objeto de proteção constitucional.
Sobre a interceptação ambiental, o ilustre mestre Eugenio Pacelli faz distinção entre gravação clandestina, quando desconhecida por um ou por todos os interlocutores, e autorizada, quando com a ciência e concordância destes ou quando decorrente de autorização judicial, de modo que, segundo ele; “as gravações clandestinas são evidentemente ilegais, porquanto violam o direito à privacidade e/ou à intimidade dos interlocutores, razão pela qual, em principio e como regra, configuram provas obtidas ilicitamente, pelo que serão inadmissíveis no processo”. [3]
Em relação aos meios específicos, importa destacar a inexistência de lei que regule a infiltração policial nas organizações criminosas visto que os agentes infiltrados tendem a cometer crimes objetivando sua ascensão nas organizações criminosas.
A Lei 9.034/90, em seu artigo 5º, com fulcro na Constituição Federal (art.5º LVIII), exigiu a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas, independente da identificação civil tendo em vista a dificuldade em perseguir os membros de uma organização criminosa.   
Algumas legislações extravagantes contêm normas especificas sobre a produção de provas. As disposições constantes da Lei de proteção às testemunhas (Lei 9.807/99) objetivam evitar que as mesmas possam ser vitimas de ataques e impedidas de prestarem depoimentos.
A colaboração dos membros da própria organização criminosa é uma importante fonte de prova, por isso foi criado o instituto da delação premiada que consiste em disposições jurídicas que visam estimular a colaboração de membros de uma determinada organização. A delação premiada foi introduzida no ordenamento nacional pela Lei dos crimes hediondos e equiparados (Lei 8.072/90), embora outras normas mencionem o instituto tais como: o artigo 16, parágrafo único, da Lei 8.137/90 que define os crimes contra a ordem tributaria, o artigo 6º da Lei 9.034/95 ora analisada.
É de conhecimento geral que uma das funções do Estado é justamente propiciar segurança aos cidadãos de forma a garantir o bem estar social. No entanto, sendo o bem estar social de algum modo alterado, cabe ao mesmo Estado perseguir e julgar o agente ou os agentes causadores dessa alteração conforme as normas penais vigentes, garantindo-lhes todos os direitos inerentes ao devido processo legal.


[1] FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio entre a eficiência e o garantismo e o crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Revista dos Tribunais; IBCCRIM, v. 16, n. 70, p.229-268. jan./fev. 2008.
[2] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Mini Aurélio século XXI. p.201             
[3] OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. Ver. Atual, e ampl, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

PODERES E FUNÇÕES ESTATAIS

O presente artigo visa tecer alguns comentários acerca das funções estatais confome previsto na Constituição Federal, de forma a, ainda que sinteticamente, designar suas principais características e diferenças, possibilitando, assim, um melhor entendimento sobre o Estado Brasileiro.  
Tendo em vista que a divisão dos poderes ou separação das funções estatais, como hodiernamente é chamada, é regra nos sistemas jurídicos modernos, diferente do que ocorria no Estado Absolutista onde a concentração dos poderes predominava, é necessario conhecer as funções desempenhadas pelo Estado Comteporâneo para entender o funcionamente da maquina estatal especialmente sobre a função jurisdicional.
                        Embora o poder estatal seja uno, existe uma separação de funções de modo que seja mantido o equilíbrio no desempenho destas evitando assim o abuso do poder por parte de quem o detenha.
                        Dessa forma se pronuncia o autor Temistócles Brandão Cavalcanti[1]:

A teoria da separação de poderes não tem mais, evidentemente, a formula clássica preconizada por Montesquieu ou Locke, mas subsistem os fundamentos doutrinários que a inspiraram no terreno político. Se fossemos analisar serenamente o sistema, veríamos facilmente que a separação é por vezes teórica porque o que existe na realidade é uma distribuição de funções de acordo com a natureza especifica de cada poder- um estabelece as normas gerais de convivência social, isto é, o Poder Legislativo, o outro administra e exerce função executória das medidas políticas e administrativas necessárias à vida do Estado, e o terceiro interpreta e aplica as normas de harmonia nos conflitos de natureza publica ou de natureza privada- o Poder Judiciário.               
                                                                                                                                             
                        A Constituição Federal de 1988 declarou em seu artigo 2º que: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A divisão de atribuições de cada função estatal é feita de acordo com a especialidade de cada poder, ou seja, cabe ao executivo administrar, ao legislativo legislar e ao judiciário julgar. No entanto, consoante o sistema de freios e contrapesos cada poder tende a exercer funções diferentes de sua especialidade, de maneira que as funções estatais estejam conectadas e que não haja preponderância de um poder sobre o outro. 
                        Assim, o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Ao Legislativo cabe predominantemente a tarefa de elaborar normas gerais e abstratas e fiscalizar as atividades do Poder Executivo mediante auxilio do Tribunal de Contas ou por meio de comissões parlamentares de inquérito. 
Atipicamente cada uma das casas do Congresso Nacional é competente para criar normas relativas a seus regimentos internos, organização, funcionamento, policia, criação ou extinção de cargos, empregos e funções de seus serviços. Da mesma forma, compete ao Legislativo, mas especificamente ao Senado Federal, processar e julgar o Presidente e o vice Presidente da Republica, nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes das Forças armadas nos crimes de mesma natureza ou conexos. Compete ainda ao Senado Federal processar e julgar os Ministros do STF, os membros do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos mesmos crimes.
Quanto ao Poder Executivo, este é exercido pelo Presidente da Republica, auxiliado pelos Ministros de Estado e no âmbito estadual e municipal pelos Governadores e Prefeitos, auxiliados por seus respectivos secretários. No nosso sistema presidencialista o chefe do Poder Executivo possui a função de Chefe de Estado, representando o Estado Brasileiro em suas relações externas, e Chefe de Governo que nas palavras do autor Alexandre de Moraes:[2]

... corresponde à representação interna, na gerencia dos negócios internos, tanto os de natureza política (participação no processo legislativo), como nos de natureza eminentemente administrativa (art. 84, I, II, III, IV, V, VI, IX e XXVII).
      
Compete, também, ao Poder Executivo, de forma não predominante, o julgamento de processos administrativos, além de iniciar o processo legislativo em determinados casos, bem como editar medidas provisórias com força de Lei e exercer a competência legislativa nos casos de Lei delegada.  
A função jurisdicional do Estado é exercida pelo Poder Judiciário que, por sua vez, é composto por juízes e tribunais. A palavra jurisdição vem do latim júris que significa direito e dictionis que, por sua vez, representa o ato de dizer ou declarar. Desse jeito, jurisdição seria a capacidade que o ente estatal possui de dizer o direito aplicável a determinada situação litigiosa. Segundo Fredie Didier Junior a jurisdição é[3]:

... a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para torna-se indiscutível.

A função precípua do Poder Judiciário é de solucionar conflitos entre os indivíduos, dirimir divergências entre Leis e suas interpretações e aplicar a Lei no caso concreto, desde que devidamente solicitado.
De forma atípica, compete ao Poder Judiciário, da mesma maneira que o Poder Legislativo, dispor sobre a organização administrativa de seus próprios serviços. Cabe ainda ao Judiciário elaborar normas consubstanciadas por meio de jurisprudências, decisões reiteradas de um assunto já decidido por determinado Tribunal, e súmulas que no ensinamento do autor Luis Flavio Gomes é:[4]

... é a síntese ou enunciado de um entendimento jurisprudencial extraída (ou extraído) de reiteradas decisões no mesmo sentido. Normalmente são numeradas. Desde a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) as súmulas podem ser classificadas em (a) vinculantes e (b) não vinculantes. Em regra não são vinculantes.
                                
                        Outro importante conceito para melhor apreciação desta obra é o de processo judicial que, por sua vez, consiste em um instrumento pelo qual o Poder Judiciário desenvolve sua atividade predominante.
                        Segundo Ovídio Araujo Baptista da Silva[5]:

No Direito, o emprego da palavra processo está ligada à idéia de processo judicial, correspondente à atividade que se desenvolve perante os tribunais para a obtenção da tutela jurídica estatal, tendente ao reconhecimento e realização da ordem jurídica e dos direitos individuais que ela estabelece e protege.

Distinto do processo legislativo que define o modo pelo qual são elaboradas as leis, no sentido amplo, o processo judicial, assim como, o processo administrativo têm por finalidade a aplicação da lei. Distinguem-se por uma série de fatos, entre os quais estão: 1- o aspecto triangular da relação jurídica no processo judicial representados por Estado-Juiz, autor e réu, quando no processo administrativo a relação é bilateral envolvendo, apenas, a Administração e o administrado; 2- a produção de coisa julgada no processo judicial, que distingue da coisa julgada no processo administrativo pelo fato de que esta só vincula a Administração, enquanto aquela torna a matéria indiscutível para ambas as partes do processo.
                       


[1] CAVALCANTI, Temistocles Brandão. Teoria do Estado. Rio de Janeiro. Editora Borsoi, 1969, Pag.243.
[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional-19ed.- São Paulo: Atlas, 2006. Pag. 430/431
[3] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11 ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. Pag. 67.
[4] GOMES, Luis Flávio. Súmulas vinculantes. Disponível em:
[5] SILVA, Ovídio Araujo Baptista da. Curso de Processo Civil (processo de conhecimento). 3ed. Porto Alegre: Fabris, 1999. Pag 7.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

INCONSTITUCIONALIDADE DA SÚMULA 711 DO STF


Súmulas são entendimentos pretorianos acerca de determinada matéria já debatida no ambiente interno do Tribunal. Consoante o autor Dirley da Cunha Junior[1] “súmula é a consolidação de entendimento da jurisprudência predominante de um tribunal acerca de determinada matéria”.
Nesse sentido é o ensinamento do jurista André Franco Montoro[2]:
   
A “Súmula” tem relevantes efeitos processuais no acolhimento de determinados recursos especificados no Regimento Interno no Supremo Tribunal Federal. Sua finalidade é não só proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho do advogado e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes.

A Súmula 711 do STF, objeto do presente estudo, tem por característica principal definir a aplicação de uma norma de Direito processual penal quanto a irretroatividade da Lei penal no que se refere ao crime continuado e permanente, in verbis:

A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência.

De acordo com a súmula supracitada será aplicada a lei penal mais grave aos fatos imputados como crime permanente ou continuado nos casos em que sua consumação não tenha sido cessada, independente se a mencionada lei vier a ser aplicada após ou durante o cometimento do delito (continuado ou permanente).
Tratar o crime permanente e crime continuado da mesma forma é um equivoco. Ambos  constituem institutos penais distintos.
Na definição do autor Cezar Roberto Bittencourt[3], crime permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, seqüestro). Nesse sentido o crime permanente representa uma conduta delitiva que tem duração indeterminada cuja consumação está sempre se renovando enquanto não houver cessado a atividade criminosa. Exemplo, como referido acima, é o crime de seqüestro que tem inicio com a captura da vitima e se prolonga durante todo o período em que esta estiver sob domínio do seqüestrador.
Dessa forma, referente ao crime permanente, é plenamente aceitável a aplicação da súmula 711 do STF, uma vez que a conduta criminosa se procrastina no decorrer do tempo e a entrada em vigor de uma nova lei penal, dando tratamento mais rigoroso à conduta criminosa em questão, em nada altera o fato de que crime permanece ocorrendo.   
No entanto, o mesmo não pode ser dito em relação ao crime continuado, uma vez que este possui natureza jurídica totalmente diferente do crime permanente.
Relativamente ao crime continuado essa conclusão contraria o principio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave, uma vez que este crime diferente do crime permanente é uma ficção jurídica na qual varias condutas delitivas são unificadas para formarem um delito.
O Código Penal brasileiro define o crime continuado no artigo 71, in verbis:

Art. 71- Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica -se- lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

A doutrina afirma que a criação do crime continuado ocorreu durante a idade média e teve como principal objetivo evitar que os autores do terceiro furto fossem condenados à pena de morte. Portanto, hodiernamente, tem o instituto a finalidade de impedir que autores de crimes, que perfaçam os requisitos do crime continuado, sejam condenados a penas excessivas.
Consoante o autor Cezar Roberto Bittencourt o crime continuado é:[4]

... uma ficção jurídica concebida por razões de política criminal, que considera que os crimes subseqüentes devem ser tidos como continuação do primeiro, estabelecendo, em outros termos, um tratamento unitário a uma pluralidade de  atos delitivos, determinando uma forma especial de puni-los.
                                 
Assim, se a aplicação desse instituto jurídico penal (crime continuado) visa atenuar a sanção penal de forma a conferir singularidade a uma pluralidade de delitos com o objetivo de que o autor do fato delituoso não venha a ser punido por várias condutas delituosas, a súmula 711 do STF contraria expressamente a intenção do legislador visto que preconiza exatamente o contrário, ou seja, prejudica rigorosamente o autor de um delito desta ordem, uma vez que o cometimento dos delitos antecedentes, mesmo que não ocorridos na vigência da lei mais grave, será considerado como se tivesse acontecido durante a vigência da lei mais grave.
A partir desse raciocínio, o criminoso que, desejando montar uma geladeira para si, tenha furtado de uma fábrica 90% (noventa por cento) das peças deste bem, poderá ser responsabilizado pelo crime que uma nova lei promova tratamento mais grave. Nesse caso, entendemos que, em razão da desproporcionalidade entre o número de delitos cometidos pelo criminoso antes da entrada em vigor da lei penal mais grave e o número de delitos cometidos após a vigência da citada lei, a aplicação da lei penal mais grave colide frontalmente com os princípios orientadores do instituto do crime continuado que é amenizar a responsabilidade penal do delinqüente de forma que este não venha a ser condenado por vários crimes.
Esse é o ensinamento do ilustre professor, Cezar Roberto Bittencourt[5], quando diz que a regra do crime continuado deve ser aplicada tendo em vista o caso concreto e sob inspiração das mesmas razões de política criminal que o inspiraram.
Além da disso, a referida súmula fere o principio da irretroatividade da lei penal mais grave consubstanciado no art. 5º inciso XL da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art.5- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) XL- a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu  

Segundo o principio da irretroatividade da lei penal mais grave, nenhuma lei incriminadora pode atingir fatos ocorridos antes de sua vigência, isto é, qualquer lei material que restrinja garantias fundamentais do individuo não pode regular fatos pretéritos. Contudo, caso a lei mais nova venha a beneficiar de qualquer maneira o acusado ou condenado, esta poderá atingir fatos anteriores a sua vigência.
Entretanto, o principio da irretroatividade da lei penal mais grave não absorve as leis processuais, ou seja, as leis que visam somente regular o procedimento e os atos processuais possuem aplicação imediata e não devem retroagir nem mesmo para beneficiar o réu.
Enfim, resta evidente a inconstitucionalidade da sumula 711 do Supremo Tribunal Federal em relação ao crime continuado uma vez que esta espécie normativa contraria o principio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave.


[1] Op. Cit., Pag. 359
[2] MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed., 2ª tiragem- São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000. Pag. 356
[3] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol 1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. Pag. 266
[4] Op. Cit., Pag. 719
[5] Op. Cit., Pag. 720